Cansei de Recomeçar

Foto de uma trilha em uma montanha alta, nos Açores. É possível ver um lago e mais ao fundo o Oceano Atlântico.
Foto de Anne Zwickermann na Unsplash

Em muitos momentos da minha vida usei a palavra "recomeçar". Creio que nós todos já ouvimos falar de alguém que recomeçou - do zero, algumas vezes. Ou mesmo você já tenha passado por esse momento de vida. Quero trazer uma nova luz sobre esse tipo de situação de vida que, invariavelmente, todos nós passamos, estamos passando, ou ainda enfrentaremos.

Nossa história

Eu poderia falar das últimas três ou quatro vezes nas quais eu "recomecei". Todas estão no intervalo de uma década no passado. Me separei de uma pessoa com quem vivi, entre idas e vindas, por outra década antes. Junto com essa separação foi também um sonho de fazer algo importante para a sociedade, deixando uma startup da qual eu era sócio. Ou de quando uma tempestade perfeita, com o desmoronamento de pilares do que eu entendia como minhas bases, no outro relacionamento que me envolvi, o trabalho que exercia, no âmbito familiar e minha própria saúde ruíram, levando-me a um quadro de crise de ansiedade e depressão; comecei a psicoterapia e meu processo de autoconhecimento nesse ponto. Poderia falar da minha migração para Portugal.  

Se eu for considerar todas as vezes que "recomecei", eu voltaria para 1985. Meus pais se separaram e minha formação como indivíduo mudaria completamente nesse ponto. Poderia falar sobre o abuso sexual que sofri no começo da adolescência. Dos dias que não tinha o que comer. De quando fui atropelado. De tantas coisas que me levaram a um lugar onde muitos de nós nos encontramos às vezes, aquele fundo, sem iluminação, do qual é dificílimo sair.

Poderia também falar de cada vez que superei cada um dos momentos de dificuldade. Pois o recomeçar, ou o renascer, só acontece quando superamos a adversidade com a qual tivemos de lidar. Temos essas baixas ao longo da nossa estrada, com o aclive depois das depressões. Quando entendemos o que está nos afetando e tomamos as ações necessárias para atravessar essa dificuldade. Ou mesmo se encontramos um atalho, mesmo sem entender.

Esse preâmbulo pode te levar a crer que este será um texto sobre minhas lamentações. Falo dessas mazelas pessoais pois as encaro totalmente no meu passado. Aprendo com elas sempre que as revisito. Todavia elas, entre tantas outras coisas, me levaram ao meu "aqui e agora". E encontrar esse ponto é fundamental para o desenvolvimento do que quero partilhar. Sim, partilhar. São coisas que não me geram mais tristeza, mas ciência sobre minha história. Cada um de nós tem sua própria trajetória, assim como você. 

O Vale e a Fênix

Nossa vida não é uma planície. Mesmo as pessoas mais afortunadas não dispõe unicamente de dias tranquilos, muito embora esteja falando de um terreno absurdamente mais plano do que o das pessoas em situação de miséria. Podemos dizer que começamos na praia onde, na maré baixa, encontramos o ponto mais baixo do nosso caminhar, em direção ao interior. Neste ponto ainda não temos vivência do nosso caminho, mesmo já havendo história sobre nós ainda antes de nossa gestação. Então caminhamos rumo a terras mais altas que, como pode perceber à partir do relevo de nosso mundo, não se trata de um tapete liso.

Nosso caminhar passa pela travessia da faixa de areia que tende a ser uniforme em aclive. Ainda assim, já é possível nos meter em sarilhos, nos ferir em pedras e passar por um buraco. Alguns de nós nem chega à primeira mudança de terreno. Há quem ainda aventure-se pelas falésias, de onde é bem fácil cair. A maioria que alcança a terra firme começa a perceber que o solo já não é mais tão confortável para pés descalços. Passamos a enfrentar inúmeras irregularidades, de diferentes naturezas. Há partes de terra mais batida, rochedos, campos gramados, florestas e lagos. Isso é o nosso dia a dia.

Conforme passam os meses e anos, centenas de quilômetros de caminhada, talvez nem sejamos mais capazes de ver o mar. Se nosso caminho nos levou a um lugar mais alto, podemos contemplar nossa estrada, com todas as montanhas, vales e campos que atravessamos. Se estamos em um lugar mais alto agora, seria lógico pensar que já estivemos em lugares mais abaixo. Miradouros estão em lugares altos por um bom motivo, não?

Caso estejamos em um vale, é praticamente impossível vislumbrarmos nossa trajetória. Talvez se chegamos a ele por uma estrada na mesma altura, teríamos alguma visibilidade. No máximo ver o céu, o topo dos montes nos cercando, outras pessoas que estão lá no alto, onde gostaríamos de já estar. Mas é uma jornada duríssima até lá. Até nos perguntamos se aquelas pessoas lá em cima usaram algum atalho (já adianto que sim). Algumas estão lá só quando é possível vê-las, mas podem estar até abaixo de nós, escondidas, quando ninguém vê.

Quando entendemos que estamos em um ponto indesejável de nosso caminho e agimos para sair de lá rumo ao cume, sempre é um grande acontecimento para nós. É efetivamente um passo do qual devemos comemorar. Normalmente até tratamos como um renascimento, dado o impacto que nos trás. Não obstante, é também comum nos colocarmos lá no pico da montanha rapidamente, como se tivéssemos criado asas e levantado voo a partir das cinzas.

"Aprendemos com cada passo que damos na vida. Às vezes caímos, para aprendermos como levantar... e continuar nossa jornada."

Normalmente, nestas fases de jornada, falamos do "recomeço" ou "renascimento". Durante muito tempo minha música preferida foi "Rebirth", da banda brasileira Angra, simbolizando os momentos nos quais me coloquei no ponto de renascido. E sempre fez muito sentido para mim tratar isso dessa maneira. Até o último vale que visitei.

Continuidade

No fim do último ano, fiquei sem trabalho em Portugal. Estava com minha noiva e enteado, vivendo da minha verba rescisória e do seguro desemprego português. Enfrentando o inverno europeu. Com um teto, com comida na mesa, procurando incessantemente trabalho. Foram mais de duzentos candidaturas, algumas entrevistas e nada. Outros enfrentamentos, como a xenofobia descarada e a enrustida, também tornaram tudo mais difícil. Decidimos voltar ao Brasil, para estarmos em um ambiente mais favorável, ao menos com relação ao apoio familiar. Vendemos tudo, nos reunimos nos últimos dias com as pessoas queridas de lá, brasileiros e portugueses, nos despedimos, com ar de "até logo". Estamos bem melhor agora.

Um ótimo resumo para uma história de recomeço, não?

Sim, o que me fez refletir muito sobre minha trajetória. Lá na Península Ibérica e de toda minha vida. De tantos recomeços, quando discutia com minha noiva como seria essa volta, eu dizia a ela: "Estou cansado de recomeçar". Esse desconforto tornou-se questionamento: "Recomeçar?".

Me voltei para uma ferramenta que me ajudou muito nos meus primeiros tempos na terra do bacalhau e pastel de nata. Falarei dessa ferramenta em outro texto com mais detalhe. Por hora entenda como um mapa dos meus sonhos e desejos, partindo do meu eu atual (no ponto que trabalho com ele). Chamo-o de Astrolábio, como a ferramenta usada na época das grandes navegações.

Vi que, dentre as coisas que me guiavam no meu Astrolábio, eu buscava construir uma família. Viver na Europa não era um requisito para nada nessa lista. Nenhum dos itens me restringia quanto à localização. Embora eu estivesse no vale naquele ponto, ainda fazia parte da jornada. Eu não era uma pessoa nova, nem de atitude, quiçá de comportamento. Era uma questão de dar continuidade à situação e decisão que tomara.

Veja que o pensamento de recomeçar tornou-se limitante, enquanto tratar aquela fase difícil como parte do caminho deu-me abertura. Aquele ponto de decisão era mais um marco pelo qual precisei passar. Se considerar meus outros "recomeços", todos eles fazem parte da jornada. 

O livro da sua vida

Não estou diminuindo a importância que aquelas superações tiveram para mim, na parte da vida pela qual passei por cada uma delas. Honro-as todos os dias. Sou uma pessoa que erra menos hoje, dentro do que entendo de mim, do que outrora. Cada "recomeço" pelo qual passei é fundamental para o que me tornei. Inclusive a reflexão sobre isso é exatamente o resultado de ter passado por cada intempérie.

Aqui fica meu convite a ti: trate seu caminho mais como um livro, de infindáveis páginas. Uma superação, por mais intensa que possa ser, não deveria ser o motivo para que sejas um novo livro, mas um novo capítulo da mesma incrível história. Sua vivência visita outros tantos livros, mas sua história é única.

Ao tratar esses momentos como recomeço, há espaço para colocarmos a história que antecedeu esta virada em lugar de esquecimento. O que proponho é que, em termos de vida, carreira, relacionamentos, família e outras áreas que façam sentido a ti, vivencie como uma sequência dos acontecimentos, dando a devida importância para o que viveste até então. Não precisas carregar o que não faz mais sentido, mas tenha a ciência de que até uma pedra irrelevante fez parte das linhas no teu livro da vida.

Por mais distante que seu eu atual seja daquele do passado, mental ou fisicamente, ainda é tua história. As dificuldades pelas quais passou fazem parte da sua jornada. Assim como as superações. Como os choros e profundos desesperos. Como os momentos de imensa alegria. Cada capítulo é o desenrolar do desenvolvimento da história que começou a ser contada lá na praia, molhando o pé no mar.

Que seja um livro no qual possa se reconhecer. E aprender. E continuar.